fé e compaixão

Você sabe perdoar? Conheça duas histórias de quem seguiu o exemplo de Jesus

Tatiana Py Dutra

Para aquele homem de 33 anos, as intensas horas de dor terminariam na colina do Gólgota - também chamado Calvário (o "lugar da caveira"), onde os condenados pela Justiça Romana eram mortos pelo suplício da crucificação. Traído, preso e açoitado até desmaiar, Ele foi obrigado a carregar, por cerca de um quilômetro, uma pesada tora de madeira que comporia seu derradeiro artifício de tortura. Por fim, Jesus de Nazaré teria mãos e pés pregados à cruz na qual passaria suas últimas horas pendurado, em agonia.

A seu favor, só os olhares da Mãe, chorosa, e de alguns poucos amigos. Contra si, uma turba que, horas antes, trocara sua vida pela de um salteador chamado Barrabás. Apesar de todo o sofrimento e ofensa, olhando para os soldados romanos e para a plateia, Ele suplica:
- Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. (Lucas 23:34).
Foi o último, mas não o único episódio em que a misericórdia do Cristo se manifestou em forma de perdão. Segundo relatos contidos na Bíblia, o Filho de Deus costumava acolher pecadores com carinho e compreensão, e desculpá-los, apesar da repulsa que pudessem provocar em outros.
- Quem dentre vós não tiver pecado que atire a primeira pedra - sugeriu aos que queriam apedrejar uma mulher flagrada em adultério (João, 8:1-11).
Os exemplos de misericórdia compõem parte importante da poderosa mensagem de Jesus. E, neste fim de semana, no qual se celebra a ressurreição de Jesus Cristo, o Diário convida você, leitor, a refletir sobre ela. Segundo o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 86,8% dos brasileiros são cristãos. Trocando em miúdos, são 166 milhões de pessoas seguindo alguma religião que tem Jesus como Messias.

Olho por olho

Seria de se esperar que vivêssemos em uma sociedade mais cordial, mas, ao que parece, a mensagem do Cristo pode estar sendo mal-interpretada ou pouco seguida. Temendo que o braço da lei não alcance os criminosos, cresce, em nossa religiosa sociedade, um desejo de fazer justiça com as próprias mãos.

Confira a programação de celebrações de Páscoa em igrejas de Santa Maria

Na maior parte das vezes, o desejo de aplicar a Lei de Talião ("olho por olho, dente por dente") não passa de bravata repetida entre amigos e familiares, ou despejada em textões e textinhos nas redes sociais. Outras vezes, porém, mostramos ser capazes de avançar no campo da desumanidade e da vingança, e atirar a primeira pedra.
Em maio de 2013, em um bairro do Guarujá (SP), Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, foi confundida por populares com uma suposta sequestradora de crianças que praticava rituais de magia negra. Foi linchada e morta. Junio Flávio Alves de Alcântara, 28 anos, morreu em agosto de 2015, após ser confundido com um estuprador. Ele foi apedrejado até a morte. Suspeito de pedofilia, o caminhoneiro Juvenal Paulino de Souza, 58 anos, foi inocentado três dias depois de morrer, em fevereiro de 2016. Um laudo pericial provou que ele não havia molestado as duas crianças para quem dera carona dias antes.

Ainda que extremos, esses são apenas alguns exemplos de uma sociedade que não sabe mais perdoar erros e os pune, não importando se quem apanha é, de fato, culpado. "Olho por olho, e o mundo acabará cego", disse, certa feita, o líder hindu Mahatma Gandhi. Apesar de não ser cristão, ele entendia que o perdão era uma característica dos fortes.
Nesta reportagem, nos deteremos no perdão, princípio básico da Lei de Amor pregada por Aquele que é homenageado no Domingo de Páscoa. "Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores", ensinou Jesus na oração do Pai Nosso (Mateus 6:9-13). 

AS CRUZES DE HOJE

Correntes da História e das Ciências Sociais no mundo todo entendem, hoje, que mais que um "sacrifício religioso" para nos absolver dos pecados, a morte do filho de Deus foi política.
- O Jesus histórico nasceu e viveu num lugar dominado por romanos, pelas armas, pela força. E, claro, que todo mundo que levantasse a voz, falasse o que não devia, era visto como ameaça. A morte de Jesus foi um "suplício didático". O lugar da crucificação era alto, para que todos vissem e não seguissem o exemplo - esclarece o antropólogo Guilherme Howes, professor de Teoria Social da Universidade Federal do Pampa (Unipampa).
No livro Zelota (Zahar, R$39,90), o teólogo iraniano Reza Aslan preconiza que Jesus formou um movimento forte pelos pobres, doentes e marginalizados. Um movimento ameaçador aos religiosos e políticos do período, que passaram a persegui-lo como subversivo, por organizar rebeliões - o único crime pelo qual alguém poderia ser crucificado sob a lei romana.

Dois milênios depois, podemos encontrar paralelos históricos entre a Jerusalém de Jesus e os dias atuais. No Brasil e no mundo, o preconceito contra os marginalizados e a xenofobia é crescente, bem como o nacionalismo, o extremismo político e a intolerância.

- Nossa sociedade sempre foi assim, mas a internet deixou isso mais evidente. Nós, enquanto sociedade, também colocamos as pessoas na cruz do suplício público. Se não físico, moral e social, com boatos, fake news. O que assusta hoje é a belicosidade das pessoas, a falta de tolerância - diz Howes. 

DICAS PARA PERDOAR

  • Lembre-se do que está envolvido em perdoar. Perdoar não significa fechar os olhos aos erros de outros ou fingir que nada aconteceu. Você simplesmente abre mão de guardar ressentimento
  •  Reconheça que perdoar traz benefícios. Abrir mão da raiva e do ressentimento pode ajudá-lo a se manter calmo, melhorar sua saúde e aumentar sua felicidade (Mateus 5:9)
  • Coloque-se no lugar de outros. Todos nós somos imperfeitos. (Tiago 3:2) Gostamos quando outros nos perdoam. Por isso, também devemos perdoar os outros. (Mateus 7:12)
  • Seja razoável. Quando tivermos de lidar com uma ofensa pequena, podemos aplicar o conselho da Bíblia: "Continuem a suportar uns aos outros." (Colossenses 3:13)
  • Não demore. Faça esforço para perdoar o mais rápido possível, em vez de permitir que a raiva tome conta (Efésios 4:26, 27)

Fonte: jw.org

"OFERECE A OUTRA FACE"

A famosa Lei do Talião é um dos códigos penais mais antigos do mundo. Constava do Código de Hamurabi, um rei de Babilônia, que viveu por volta do ano 1700 a.C.. Face à instabilidade jurídica e social em que viviam em sua época, desenvolveu uma coleção de sentenças, nas quais os juízes pudessem se inspirar para exercer a justiça. Os 282 artigos, gravados em pedra, estão em exposição no Museu do Louvre, na França.
Segundo a Bíblia, 500 anos depois de Hamurabi, Moisés também fez com que o povo de Israel seguisse essas lei. Em frente ao Monte Sinai, ele anunciou aos israelitas: "Se houver acidente fatal, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, contusão por contusão" (Êxodo, 21: 23-25).
Não era, de fato, uma lei de vingança, mas uma orientação aos juízes em uma época em que não havia polícia. Fato é que, com a chegada do Cristo, a lei mudou de teor.
- Ouvistes o que foi dito: "Olho por olho e dente por dente." Eu, porém, digo-vos: não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém quiser pleitear contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa. E se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha duas com ele. Dá a quem te pede e não voltes as costas a quem te pedir emprestado - disse Jesus no Sermão da Montanha (Mateus, 5:38-41).

O perdão pode mudar a sociedade

A alegoria pacífica do Cristo nesse ensinamento faz com que ele seja mal compreendido, ao sugerir passividade da vítima. Mas o professor do curso de Teologia e diretor da Faculdade Palotina (Fapas), padre Antônio Dalla Costa, diz que se tratava apenas de oferecer uma nova perspectiva para a população embrutecida da época:
- Jesus disse algo como "Fazer uma vingança proporcional ao mal que me foi feito? Não, não é por aí". Para mudar uma sociedade, a gente tem de evitar reagir na mesma medida de violência.
O bispo arquidiocesano dom Helio Rubert diz que para quem é verdadeiramente cristão, não odiar a quem lhe fez mal não basta:
- "Amai-vos uns aos outros, esse é o meu mandamento", disse Jesus. Os fiéis devem buscar formas de colocar em prática as coisas simples do dia a dia. No silêncio, na oração. São muitas formas de criar um novo ambiente mais amoroso. Assim, a humanidade vai se renovando a partir do amor. 

"70 VEZES 7 VEZES"

Professor do curso de Teologia e diretor da Faculdade Palotina (Fapas), padre Antônio Dalla Costa afirma que as pessoas frequentemente se equivocam com o significado do perdão.
- Confunde-se o perdão com, simplesmente, esquecer tudo, como se nada tivesse acontecido. Mas o perdão de Jesus sempre teve condições. E a condição era compensar o passado e mudar de forma especial o futuro. Ou seja, o perdão deve ser transformador e nunca estará em contraponto à Justiça, mas estará contra a vingança. Se alguém me fez mal, deve mudar de atitude. Se alguém cometeu crime, deve responder por ele e mudar de rumo. O perdão é eu decidir que vou querer o bem da pessoa que me fez mal. E essa minha atitude pode provocar a transformação do outro - ensina o religioso.
O padre pondera que, assim como o amor, o perdão não é um sentimento, mas uma atitude. E ela exige compaixão e empatia. Colocar-se no ligar do outro para tentar compreendê-lo.
- Sem essa compreensão, é difícil perdoar. O problema é que vivemos numa sociedade completamente egocêntrica. Daí, o perdão fica complicado. Eu penso só em mim, aí, a gente entra nessa dinâmica vingativa - pontua.
À luz da doutrina espírita, no perdão reside o critério da verdadeira justiça, já que cumpre a recomendação de Cristo de querer para os outros o que para si mesmo quereria. "Não sendo natural que haja quem deseje o mal para si, desde que cada um tome por modelo o seu desejo pessoal, é evidente que nunca ninguém desejará para o seu semelhante senão o bem" , esclarece a resposta à questão 876 de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec.

Quem o concede, também ganha

Segundo a psicóloga Maria Clara Jost, a reação vingativa na linha do "vou dar o troco" se assemelha à dos animais.
- Se você pisa no rabo de um cachorro, por exemplo, ele reage imediatamente. Porém, a capacidade de perdoar, os animais não têm. Para a filósofa alemã Hannah Arendt, o ser humano é o único ser da natureza que, ao perdoar, inicia um ato novo. Quando ele perdoa, ele inaugura outro movimento, saindo do círculo vicioso - disse ela ao portal Uai.
Maria Clara afirma que o perdão é um ato de liberdade. Isso porque quem o concede se liberta da raiva, do rancor, do ódio e, consequentemente, de doenças que esses sentimentos podem trazer. Não é fácil, mas não é impossível.
É o que provam os exemplos de duas mulheres que os leitores conhecerão nas páginas a seguir.

"COMO EU IA VIVER SEM PERDOAR?"


Quem observa a dona de casa Loreni Saletti dos Santos, 59 anos, olhar para o marido, Adão Jorge, 63, consegue notar o brilho que só o amor é capaz de providenciar. Difícil é imaginar que a união do casal, prestes a completar 41 anos, foi ameaçada por um rival sorrateiro e persistente: o alcoolismo.

O pesadelo começou há 20 anos, quando o técnico em manutenção deixou de beber socialmente para ingerir bebida alcoólica regularmente e em grandes quantidades. Na companhia de amigos, Adão distraía-se com o jogo de bocha e postergava as responsabilidades como marido e pai de três filhos. A diversão, foi se tornando irresponsabilidade.
- Ele chegava de madrugada, cada vez mais tarde. De manhã, quando acordava para trabalhar, ainda estava (sob efeito do álcool). E, quando voltava do serviço, começava tudo de novo com a bebida - lembra Loreni.
Mas, se na rua, entre amigos, a bebida deixava alegre o tímido Adão, em casa, o efeito do álcool era negativo, e a principal vítima era Loreni. Ainda que não batesse na esposa, dedicava-se a humilhá-la - especialmente se houvesse testemunhas.
- Uma abobrinha que ele comprasse, se eu não usasse em dois ou três dias, ele dava para qualquer um. Dizia: "Pode levar, porque ela não vai usar, vai deixar apodrecer. Essa daí não quer saber de nada." Puxava a cadeira quando eu ia sentar para me ver cair, desdenhava, dizia que eu não tinha serventia. Ele usava palavras para me magoar. Era muita humilhação - recorda a dona de casa.
Apesar do desgosto, Loreni não esboçava reação contra o marido nem compartilhava o sofrimento. Mesmo dos filhos, ela tentava esconder a situação que vivia:
- Até que as crianças foram crescendo e percebendo. Um dia, eles chegaram a perguntar por que eu não me separava. E eu dizia: "Porque eu não conheci teu pai assim. Eu conheço o coração dele. É um homem bom.
Ela se prendia na recordação dos primeiros anos de casamento, quando teve fratura exposta nas pernas após uma queda e teve no marido o esteio firme e generoso.
- Ele me carregava no colo para cima e para baixo e ainda cuidava das crianças. Foram dois anos nessa situação - lembra a mulher agradecida.
Há 10 anos, porém, ela buscou um auxílio que acabaria por mudar a vida da família: o Centro de Apoio Psicossocial (Caps) Álcool e Drogas. Participando das reuniões, uma psicóloga a orientou como agir com o marido.
- Eu nunca dizia nada para ele, mas ela me disse que eu precisava conversar, falar o que queria dele, que parasse de beber - relata Loreni.

Os filhos, que, depois, passaram a acompanhar a mãe nas reuniões, também começaram a dizer ao pai como desejavam que ele fosse, por meio de vídeos feitos em casa. Por fim, convenceram Adão a ir ao Caps. No início, contrariado. Depois, aceitando o tratamento.

O caminho até a sobriedade foi longo e penoso, mas neste domingo de Páscoa, Adão vai comemorar um ano sem ingerir bebida alcoólica.

- Essa coisa (do álcool) também vai muito das amizades. Há um ponto quem que você tem vontade de parar, mas não consegue. Cheguei a parar por três anos, mas acabei voltando, sem exagerar. Aí, depois, tomei vergonha. Hoje, posso ir nos mesmos lugares de antes conversar com os amigos, mas fico um pouco e me retiro. Algumas amizades se desfizeram, mas as de verdade continuaram - conta Adão.
Na jornada contra o álcool, avalia o técnico em manutenção, a única coisa constante foi o amor da mulher.
- Nesses 41 anos, tenho mais é que pedir perdão do que perdoar. O tempo passa, e não dá para voltar atrás. Mas eu só posso agradecer. Se não fosse por ela, eu estaria nas ruas, ou teria morrido - reconhece Adão.
Loreni não olha para trás, mas, quando lembra do passado de humilhações conjugais, o faz sem mágoa. Sua persistência fez renascer em Adão o homem que ela conheceu na juventude e decidiu compartilhar a vida.
- Por que ficar ao lado de uma pessoa sem perdoá-la? Fui criada em uma família de muita fé e sempre pedi a Deus forças para que ele não desanimasse. Eu conhecia as qualidades dele, e que superavam os defeitos. A resposta de Deus é a felicidade que colhemos agora. Está tão bom.
- Ela já tem um lugarzinho no céu - elogia Adão.

"TIVE VONTADE DE MATÁ-LO"

É com orgulho que a empregada doméstica Leonor da Silva Reis, 64 anos, fala do filho, Juliano, 27. Administrador formado pela Universidade Franciscana (UFN), nunca perdeu um ano na escola e foi aprovado em concurso público para atuar no Hospital Universitário de Santa Maria (Husm). Mas ao citar as façanhas do rapaz, não consegue deixar de imaginar aonde teria chegado a primogênita, Juliana.

A menina tagarela, de longos cabelos escuros foi a principal companheirinha da mãe por quatro anos. Na tarde de 13 de outubro de 1989, elas foram tragicamente separadas. Foi há 28 anos, mas a mãe lembra como se fosse ontem.

- Estávamos na parada em frente da igreja (a Igreja do Amaral, em Camobi), esperando o ônibus para ir para fora. Estávamos de mãos dadas, como sempre. Foi quando eu vi aquele carro, um Corcel verde, vindo, desgovernado. Ele entrou por trás do ônibus que estava chegando, e passou por cima da gente. Eu tentei segurar minha filha, mas a saia dela enganchou no paralama, e ele levou ela adiante - rememora.

Quando a empregada doméstica se deu por si, havia uma multidão ao seu redor. Com o ombro e o braço doendo pelo esforço de segurar Juliana, ergueu-se e foi atrás da filha. De novo, a memória agride Leonor:

- Ela dizia: "Está doendo, mãezinha, tá doendo!" Eu não sabia se ela dizia isso da dor no corpo ou de me deixar. O corpinho dela amoleceu. Os vizinhos nos levaram para o hospital e a atenderam, mas, em seguida, veio uma enfermeira e disse: "Mãe, sua filha não está mais conosco".

Leonor mergulhou numa dolorosa espiral de desespero que durou meses. A doméstica descreve a fase citando os dois velórios da criança, um na capela do Hospital de Caridade e outro, na Igreja do Amaral; a definitiva separação no sepultamento; e um período divorciada da realidade.

- Eu perdi tudo. Eu larguei a casa de mão, o marido, andava pelas ruas sem pensar. Não dormia, só chorava. Depois de uns quatro meses, procurei um padre. Ele disse que estava na hora de reiniciar a minha vida, queria que eu tivesse outro filho...

Para dar andamento ao plano de se reconstruir a partir das cinzas da perda, ela mudou de emprego. Foi trabalhar em uma fruteira, onde poderia ver mais gente e se entreter com o movimento, apesar de se sentir profundamente só. Em fevereiro, estava grávida, mas a felicidade da nova vida teve de conviver com o vazio daquela que fora perdida, e com o peso da raiva.



- Eu tinha vontade de matá-lo, consumir com ele, bater. Nunca trocamos uma palavra. O vi duas vezes, no Fórum. Ele olhava para mim e baixava a cabeça. Acho que sentiu vergonha. Devia estar arrependido de ter se embriagado no dia em que os atropelou. E ele estava com os filhos dele no carro - conta a mãe, acrescentando que o motorista não chegou a ser preso.

Leonor agarrou-se na fé para se manter equilibrada, mas o rancor a envenenava. Ela conta que a dor a sufocava, provocava crises de pressão alta e, em alguns dias, até engolir era difícil para seu peito oprimido.

- Um dia, estava na igreja, e falei com o padre, quer era lá da Base Aérea. Disse que eu precisava perdoar. E o padre falou: "Perdoa, que tu vai se sentir melhor". Outro dia, na matriz, um religioso disse: "Tens de fazer o que o coração está mandando."O perdão custou muito. Lágrimas, muitas noites de sono. Não foi fácil, mas, há oito anos, perdoei.

Leonor fez questão de mandar uma mensagem ao motorista, que se mudara para Santa Catarina, por meio de um parente. Esperava que isso ajudasse o motorista, que sofria de câncer.

- Mandei um recado, dizendo que, em nome de Deus, lhe dava o perdão. Foi bom para mim. Quero um dia partir dessa vida com a consciência em paz, com o coração limpo. A gente tem que perdoar para ser perdoado - ensina.

Se estivesse viva, Juliana teria 32 anos hoje. Uma ausência muito sentida por Leonor, que diz ser capaz de compreender a tristeza sem data de vencimento das mães das vítimas da Kiss. A perda as tornou irmãs. Mas se as lembranças são dolorosas, também a memória se encarrega de amenizá-la: de quando em quando, a pequena Juliana aparece para a mãe, em sonho.

- Eu sonho com ela e ela está viva, rindo para mim. Na véspera do aniversário dela, sonhei que ela estava chegando na porta, sorrindo, com aquele cabelão dela: "Mãezinha, Mãezinha"! A saudade é a mesma. Não passa. Ela para mim, era tudo, era minha joia, minha rainha, minha amiga. Eu a considerava um presente, já que ela nasceu no dia 16 de fevereiro e eu no dia 18 _ conta a mãe, sem deixar de acrescentar que seu novo presente, o filho, nasceu no dia 14 de outubro, um dia depois do aniversário da morte de Juliana.


E X P E D I E N T E

reportagem
TATIANA PY DUTRA

fotos
LUCAS AMORELLI

arte
PAULO CHAGAS

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